sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Capítulo IV - O Círculo de Magia


Um rapaz, talvez um dos pobres desinformados que causaram toda aquela algazarra, estava sendo sugado para o outro mundo e se encontrava totalmente desacordado. Seu corpo já havia sido absorvido até a altura do peito e ele estava debruçado com o rosto caído diretamente no chão, enquanto se afundava mais ainda pela fenda, que a esta altura havia se esticado consideravelmente. Helga, pensando: “Saco. Era só o que me faltava, ter ainda que salvar um dos imbecis mal comportados que me deram todo este trabalho. Espero que ele receba algum tipo de castigo depois.”, correu até o moço e começou a puxá-lo pelos braços, ao que ele parcialmente acordou e disse-lhe fracamente, como que se esforçando muito, algo que ela não entendeu. 
 – Fique quieto. Você não sabe e nunca vai saber o erro que cometeu –, disse Helga rispidamente, aplicando-lhe um feitiço de sono. Ele, sem ao menos entender qualquer palavra, caiu fora de si novamente, enquanto era completamente puxado por ela para fora da fenda. “Como imaginei”, pensou ela, ao contemplar o moço que havia acabado de salvar, “aconteceu o pior”. A parte do corpo que havia adentrado o mundo espiritual estava completamente machucada. Era como se ele houvesse tido seu corpo inteiramente arranhado, ou se tivesse se ralado todo. “O ignorante ainda está nu, para completar a cena... humanos realmente se metem em problemas por simples burrice”, pensou ela, imaginando o que poderia fazer para ajudá-lo. Porém, como agora saíam mais espíritos ainda pelo buraco que havia sobrado, ela o deixou recostado a uma das paredes do cômodo, cortou a palma de sua mão direita com uma adaga que tirou de dentro de seu vestido e, com o sangue que escorria, começou logo a desenhar um círculo de magia em volta do buraco espiritual. Qualquer um que lá chegasse além dela, de qualquer outro mago e dos que haviam realizado o ritual deparar-se-ia com a cena de uma louca fantasiada a utilizar o próprio sangue como tinta para desenhar no chão e um menino totalmente injuriado recostado a uma parede.
Os espíritos que saíam pela fenda olhavam para Helga e se afastavam amedrontados por conta do feitiço protetor que ela havia jogado sobre si mesma. Isso a ajudava a não se desconcentrar enquanto fazia o círculo mágico, pois iria utilizar uma magia muito complexa e precisava de seu potencial ao máximo. Até que ouviu o barulho de pessoas subindo a escada e correndo pelo corredor. “Eles estão abrindo porta por porta para checar”, imaginou Helga, “se há alguém aqui dentro”. Os homens, por volta de cinco, já estavam a três portas perto do cômodo onde ela se encontrava quando, faltando somente alguns símbolos para o círculo ficar pronto, Helga teve que interromper seu trabalho para pensar sobre o que fazer quando fosse vista. “E agora, o que eu faço? Preciso dar um fim a isto tudo logo ou a situação pode se agravar mais ainda. Mas esses caras... Pense, Helga, pense!”, dialogava com seus botões, desesperada com a situação, até que teve uma idéia. “Já sei! Vou ter que usar um pouco de força e concentração, mas não importa!”, pensou consigo mesma, enfiando a mão esquerda em seu decote e revirando os próprios seios, retirou de um bolso que ficava do lado de dentro de seu vestido algo que lembrava uma folha de papel recortada em forma oval e com as bordas adornadas com símbolos estranhos, que lembravam arabescos. Centralizado na folha, havia um pequeno círculo de magia, no qual Helga pingou um pouco de seu sangue. O papel imediatamente começou a brilhar, então ela recitou um encanto em voz baixa e delicadamente fechou a porta.
Havia cinco policiais no corredor. Eles estavam revistando o antigo hospital, pois havia sinais claros de que alguém o havia invadido aquele dia. A porta dos fundos estava arrombada e fora deixada aberta por alguns delinqüentes, três dos quais haviam sido encontrados e tratados por um monge e, depois, levados ao hospital por uma ambulância chamada pelo mesmo. De acordo com a denúncia, havia sumido um adolescente, visto pela última vez por seus colegas dentro do hospital abandonado. Além disso, pessoas que estavam lá fora haviam ouvido estrondos de portas batendo, um gritinho, gente correndo e coisas caindo, além de terem visto algumas luzes coloridas que sumiam rapidamente. Os oficiais sentiam calafrios horrendos e tinham a sinistra sensação de estarem sendo observados por todos os lados desde o começo do dia, mas principalmente depois de adentrar aquele local.
– O que foi aquilo? – perguntou o Delegado Hirata discretamente, ao avistar uma luz que parecia vir da última porta do corredor à esquerda – Vi algo parecido com um brilho verde! Talvez alguém esteja se escondendo no último cômodo. Cassetetes e armas em punhos! Atenção!
                Hoshikawa, um policial novato que sempre tentava mostrar serviço, se precipitou e, sob ordem alguma, posicionou-se à frente de todos. Hirata pensou em adverti-lo, mas a situação era muito delicada para qualquer discussão. Então, deu-lhe um toque no ombro e lhe lançou um olhar repreensivo. O novato, por sua vez, entendeu o recado e forçadamente cedeu a passagem para os outros quatro, ficando em último lugar. Então, todos começaram a se aproximar cautelosamente do fim do corredor, onde supostamente estaria a última porta, organizados em fila. Ao todo, eram o Delegado Hirata, seguido pelos experientes Nakashima e Morioka, o jovem Yamazaki e, por último, o novato, todos devidamente fardados. A única iluminação era a vinda das lanternas que, curiosamente, tremiam nas mãos dos policiais já nervosos o bastante. O clima era de extrema tensão seguida de medo e eventuais náuseas, pois por todo o local espalhava-se um cheiro de decomposição, como se algo ali tivesse morrido e apodrecido. Soprava, também, em todas as direções um estranho e leve vento de origem desconhecida por eles, mas que destacava mais ainda o cheiro pútrido do ambiente macabro. Era como se houvesse vários pássaros invisíveis passando à sua volta. Além disso, eles tinham a impressão de estar ouvindo pequenos sussurros, como que cochichos ininteligíveis, mesmo não havendo mais ninguém à sua volta.
O Delegado, dando um sinal para que Nakashima prosseguisse para o lado direito da porta, posicionou-se à esquerda da mesma com sua arma de balas de borracha em punho. Ao sinal seguinte, Nakashima moveu a maçaneta e abriu a porta com extrema destreza, ao que todos reagiram pulando para dentro do cômodo, que estava totalmente escuro e quase vazio. As únicas coisas em especial eram uma cadeira tombada e uma mesa recostada no canto esquerdo, por sinal extremamente empoeiradas. Havia também um armário cheio de frascos velhos sem uma das portas. Alguns se encontravam quebrados, mas não havia nada que lhes chamasse a atenção. Assim que começaram todos a investigar as paredes e a janela, que parecia impossível de ser aberta facilmente, a porta inesperadamente fechou-se em um baque súbito, dando-lhes o mais forte susto dos últimos meses ou anos. Hoshikawa se atirou ao chão; Nakashima, Morioka e Yamazaki ficaram estatelados e não conseguiram reagir de qualquer forma por alguns segundos, tamanho fora-lhes o sobressalto. O Delegado Hirata disparou inutilmente algumas balas de borracha em direção à porta, porém nada mais aconteceu.
                Helga estava satisfeita por ter despistado os oficiais. Ela havia aplicado à porta do cômodo onde se encontrava um portal que a ligava ao quarto ao lado, cuja entrada estava trancada. Portanto, qualquer um que tentasse passar pela porta acabaria por entrar para o cômodo vizinho, juntando-se aos policiais. Pelo menos por algum tempo, eles estariam detidos, enquanto ela poderia terminar seu feitiço. Então, vendo que sua ferida já estava quase se secando, teve que abri-la mais uma vez, cortando-a mais profundamente e dando um urro de dor do modo mais possivelmente discreto. “Imagine a cicatriz que isso ficaria se não houvesse meios mágicos de cura”, pensou ela, aterrorizada, terminando de desenhar os sinais que faltavam.
                O círculo estava completo e, talvez por estarem intimidados por Helga, não saíam mais seres do outro mundo pela fenda. Ela, então, preparou-se para começar a cerimônia de fechamento. Posicionou o dedo indicador direito sobre seu lábio inferior e tocou o círculo de magia com a mão esquerda, enquanto proferia as palavras mágicas necessárias. O círculo começou a brilhar intensamente e a fenda a se fechar. Era como se estivesse sendo costurada por agulhas e linhas invisíveis, ou como se uma ferida em forma de rasgo começasse a se cicatrizar sozinha fechando-se a partir de suas extremidades. A luz se tornava cada vez mais intensa e vermelha. Enquanto a fenda se fechava, ouviam-se urros e choro vindos do outro mundo. Então, a construção e suas redondezas começaram a tremer fortemente, como se um terremoto as abalasse em especial e Helga ouvia do quarto ao lado os policiais assustados falando muito alto e o barulho de vários vidros quebrando ao chão. Tudo foi se intensificando ao ponto de Helga entrar em um estado de torpor temporário devido às ondas espirituais que a magia soltava, quando de repente o feitiço se completou e a luz sumiu. Os tremores pararam depois de alguns segundos, mas lá fora soava um alarme de situação emergencial. Helga, um pouco tonta, acendeu um pouco de fogo com sua mão e correu até o moço que estava recostado na parede para ver como ele estava. Ele, inconsciente e debilitado, parecia estar prestes a morrer, o que a deixou muito preocupada. Ela, então, passando o fogo para seu cabelo, meteu novamente a mão por entre os seios e tirou de dentro de seu vestido um pequeno frasco tampado. Dentro do que mais parecia um tubo de ensaio enfeitado com pequenos desenhos prateados de luas e estrelas, havia um líquido fosforescente, cuja metade ela derramou dentro da boca do garoto injuriado. “Acho que agora, já não há mais preocupação. Só preciso alterar sua memória”, pensou ela, esperando que o moço despertasse. Ele, depois de aproximadamente cinco minutos, abriu seus olhos vagarosamente, contemplando Helga e suas peculiares vestimentas. Ela, por sua vez, fixou seus olhos nos do moço que, por um instante ficou totalmente estatelado para, logo em seguida, cair no sono outra vez. Então, deixando-o como estava, Helga guardou o recipiente com o que sobrou do líquido (que na verdade era uma poção usada em primeiros socorros) em seu vestido novamente e foi até a porta, quebrando o feitiço que havia aplicado para despistar os policiais. Em seguida, ainda ouvindo a agitação deles trancados no quarto ao lado, abriu a porta de seu cômodo e saiu para o corredor, transformando-se no gato camaleão e correndo pelos corredores do hospital novamente até voltar à janela pela qual havia entrado. O clima continuava o mesmo: havia espíritos pútridos em todos os lugares e o desagradável cheiro de defuntos estava espalhado pelo ar. Ao sair pela janela, ela notou que o caos na cidade continuava o mesmo. Havia um grupo de pessoas se espancando na frente do hospital, gente se mordendo em outro canto, pedras sendo tacadas para todos os lados por uma senhora totalmente descontrolada e aviõezinhos de brinquedo incendiados voando de uma janela onde se encontravam algumas crianças enlouquecidas. Pessoas corriam de um lado pro outro desesperadas e eram perseguidas por outras totalmente fora de si. Fantasmas horrorosos vagavam por todos os cantos; alguns, atiçando as pessoas, outros as possuindo e um grupo distinto berrando ao léu. Helga sabia que sua missão não havia terminado. Precisava ativar a “Gestesbol” para aprisionar todos os espíritos, mas antes precisaria de um meio de atraí-los para perto de si. Então, pensou um pouco e chegou a uma conclusão: usar a si mesma.
                Ela atravessou a rua, foi para trás de um carro capotado na esquina e voltou à sua forma original. Então, desativando o bracelete “D.A.”, seu poder mágico começou a ficar descontrolado e, obviamente, a chamar a atenção dos seres pútridos do outro mundo. Helga desativou o feitiço protetor que havia jogado sobre si mesma e começou a se concentrar para expandir sua aura o máximo que pudesse. Então, por um segundo, tudo parou. As pessoas possuídas deixaram o que estavam fazendo e olharam todas ao mesmo tempo em direção ao lugar onde Helga estava. Mesmo sem poder vê-la por trás do veículo, começaram a andar até o lugar onde estava, como se fossem atraídas por algo em comum. O mesmo fizeram os seres vagantes, que começaram subitamente a se dirigir a ela, vindo de todos os cantos da cidade e se amontoando no ar a formar algo parecido com uma grande multidão flutuante. Ao que lhes parecia, havia alguém com muito poder para alimentá-los chamando-os em direção a si. As pessoas possuídas começaram, de repente, a cair desacordadas ou a voltarem a si, enquanto que os seres que as controlavam saíam para se juntarem aos outros. Cidadãos que estavam brigando, ao verem pessoas caindo estateladas de repente, pararam de se espancar e, como se tivessem tomado um banho repentino de água fria, olharam estupefatos à sua volta, percebendo o estrago catastrófico que havia de alguma forma acontecido ali. Policiais e ambulâncias continuaram correndo por todos os lados enquanto bombeiros apagavam o fogo que se espalhava vorazmente a partir de diversos pontos. Tudo ainda estava fora de controle, mas o povo parecia de algum modo mais normal.
                Então, mesmo podendo ser vista pelas pessoas mais próximas, Helga começou a colocar seu plano em prática: enfiou a mão pelo decote e retirou, de dentro de seu vestido, uma espécie de báculo em cuja extremidade havia uma esfera parcialmente transparente, porém toda colorida. Era como se nuvens de cores se espalhassem em seu interior: uma peça excêntrica, mas ao mesmo tempo bela. Recitando um feitiço, ela ergueu o báculo em direção aos seres vagantes que se aglomeravam ao seu redor, concentrando-se ao máximo. Então, a esfera da extremidade, ou “Gestesbol”, ficou totalmente negra, emitindo uma forte luz avermelhada.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Capítulo III - O Finado Hospital Matsutake


Olhos de cor verde fluorescente... Caninos tão grandes ao ponto de sair pela boca e chegar ao queixo... Fluidos corporais nojentos vazando por entre escamas grotescas e um cheiro de podridão que invadiu todo o compartimento de cargas... Além de tudo isso, um arrepio na espinha tão forte como nunca. Foi isso que o moço, que inicialmente estava mal intencionado, viu e sentiu. Aterrorizado pela visão nauseante que se projetava à sua frente, voltou-se para a saída do compartimento, empurrou a porta, que estava semicerrada, e saiu correndo tão velozmente como nunca havia feito em sua vida. Helga, aliviada, voltou à forma de mocinha japonesa, desta vez certificando-se de estar totalmente a rigor, espiou pela saída para verificar se havia alguém do lado de fora do caminhão, pulou para fora e saiu andando como se nada tivesse acontecido. Por dentro, ela gargalhava ao se lembrar da cara assustada do tarado do caminhão quando contemplou sua cruel criatividade. Mesmo se o caminhão lhe pertencesse, Helga tinha certeza de que ele não voltaria até lá de modo algum sozinho. Se algum dia voltasse, é claro. Como a cidade já se encontrava em estado de caos, não seria estranho se por acaso aparecesse um monstro em um lugar qualquer. Por isso, ela nem se preocupava com o fato de ter se transformado e afugentado o pervertido com cara de mafioso.
Helga precisava se apressar, pois a situação da cidade ficava cada vez pior. Por onde quer que ela passasse, havia espíritos desordeiros causando todos os tipos de problemas e bagunçando tudo. Pessoas corriam gritando umas às outras e havia diversos indivíduos caídos em transe pelas calçadas. Alguns estabelecimentos comerciais haviam pegado fogo e pessoas possuídas faziam movimentos estranhos, ora rolando pela rua deitados, ora se retorcendo no chão ou se jogando contra paredes. Os moradores sãos não sabiam se saíam ou se ficavam em casa. Carros de polícia, bombeiros e ambulâncias passavam por todos os lados, seguidos pela imprensa, que neste dia estava totalmente inflamada em vigor.
Helga precisava pensar em um jeito de chegar logo à origem de tudo aquilo. Então, desativando o “D.A.” (Bracelete de Densidade) para poder canalizar mais sua força, concentrou todo o poder espiritual em seus olhos e tentou enxergar pela aura que se projetava pela cidade um ponto mais branco do que os outros. Assim, notou que a mais ou menos meio quilômetro do lugar onde se encontrava, a cor da aura ficava intensamente branca, o que significava que lá havia mais seres do mundo da morte. Helga também podia ver que quanto mais se aproximava do local, mais espíritos descontrolados havia pelas ruas. Além disso, alguns tentavam atacá-la enquanto estava andando, mas ela somente se esquivava e não lhes dava a mínima atenção. O que lhe importava era chegar ao devido lugar e cumprir sua missão perfeitamente.
Então, continuou seu caminho apressada como nunca, pois cada segundo contava para o sucesso de sua missão. A situação estava ficando totalmente fora de controle, e se ela tivesse que chamar outro mago para ajudá-la, não ganharia os méritos necessários para ser reconhecida pelo Mestre Elianov. Por isso, precisava ter no mínimo cem por cento de sucesso para poder voltar com honra a sua terra.
Helga corria pelas ruas dobrando esquinas e desviando de pessoas descontroladas e carros desgovernados que vinham em sua direção. Analisando a situação pelo que via, não pensava em uma explicação humanamente possível para o que estava acontecendo e pensava sobre de que modo o mundo humano lidaria com aquilo tudo. Mas isso era trabalho para Elianov, que sempre arranjava um jeito de influenciar no fluxo de notícias humanas em casos críticos como esse. Além disso, para uma primeira missão, ela estava até que se divertindo. Afinal, dizem que o primeiro trabalho no mundo humano é inesquecível, ou por ser terrível e aterrorizante, ou por ser simples demais. No seu caso, era a segunda opção somada a mais um pouco de adrenalina. “Seria isto um meio termo?”, pensou Helga. Afinal, ela só conhecia o mundo humano por instruções de treinamento ou histórias que havia ouvido anteriormente, e ver tudo ao vivo estava lhe sendo uma experiência um tanto complicada.
Chegando a cinqüenta metros do hospital abandonado, só faltava virar uma esquina quando, de repente, uma mulher toda descabelada e ofegante se atirou por trás de suas costas e se agarrou a seus pés, fazendo Helga levar um tombo e cair de cara no chão. Com o nariz sangrando, ela se virou para trás e tentou se desvencilhar da louca que estrangulava seus tornozelos, quando começaram a se aproximar mais dois homens e um menino claramente com a intenção de pular para cima das duas.
Então, pensando rapidamente, ela conseguiu livrar seu pé direito e dar um chute no rosto da mulher, que caiu desmaiada. Os outros, que se jogaram em direção a elas, caíram desacordados no momento em que tocaram Helga atingidos por um choque elétrico soltado pela mesma, tendo espasmos no chão e espumando pela boca. “O que foi que eu fiz?!”, pensou ela assustada, mas voltando-se para seu dever, disse para si mesma: 
– Não posso perder tempo, depois vejo o que aconteceu.
Então, apressou-se e dobrou a esquina à esquerda, avistando o finado Hospital Matsutake na calçada direita. Neste momento, porém, ela encontrou um contratempo: o hospital estava rodeado de pessoas enlouquecidas, policiais, ambulâncias e jornalistas com câmeras de televisão. Seria impossível adentrar o local sem ser vista ou interditada por alguém “em nome da lei”. Além disso, mesmo conseguindo invadir o hospital, seria percebida se utilizasse alguma magia muito extravagante lá dentro, o que a atrapalharia muito. Com seu nariz ainda sangrando, ela começou a pensar seriamente no que fazer, quando teve uma idéia: transformar-se novamente no gato camaleão. No resto, ela pensaria mais tarde. Então, voltou para a rua onde acabara de ser atacada e, vendo que não havia mais ninguém no local, enfiou-se por trás de um carro, reativou o bracelete mágico e se transformou, em meio à luz verde fluorescente característica, em sua “fantasia” favorita. Agora, correndo como nunca, voltou para a rua do hospital e tentou achar um jeito de atravessar a multidão. Seria perigoso se fosse atropelada ou pisoteada, o que era bem provável baseando-se no que se decorria diante de seus olhos. Então, atravessou para o canto direito da rua, subiu o muro de uma casa vizinha ao hospital, coincidentemente também abandonada e, pela cerca, seguiu até o terreno ao lado, invadindo-o sucessivamente. Pronto; agora, Helga se encontrava no quintal de seu destino final, repleto de fugitivos do mundo dos mortos e de energia negativa. A visão do lugar era horrenda: ali, se encontravam centenas de espíritos vagantes com as aparências mais mórbidas que ela já havia visto, berrando e correndo (ou voando) para todas as direções. Todos eles, é claro, perceberam também que Helga estava lá e começaram a se dirigir à mesma. Ela, pouco se importando, seguiu correndo em direção a uma janela que estava aberta e adentrou a construção, que parecia ter sido abandonada há anos. 
Helga estava em uma sala de espera, na parte frontal esquerda do hospital. Lá dentro, havia alguns bancos, revistas velhas e muito lixo espalhados pelo chão, uma televisão quebrada em cima de uma estante velha e um pequeno balcão. A janela pela qual havia entrado estava semi-coberta por uma cortina rasgada, de modo que era possível até observar um pouco o movimento lá fora e receber um pouco de luz. Havia uma porta do outro lado da sala, à qual Helga se dirigiu imediatamente. Ela teria que sair dali e passar por três corredores para poder chegar até a fenda. No momento, já conseguia de algum modo localizá-la por causa de sua proximidade e densidade espiritual. Então, tratou de voltar para sua aparência original, emanando um pouco de luz, e tentou abrir a porta que, por puro azar, estava trancada. “Legal”, pensou ela, “agora terei que fazer um feitiço e tenho certeza de que serei vista de lá de fora. Já não basta toda a luz que acabei de soltar para voltar ao normal... mas já que cheguei até aqui, é o que me resta a fazer”. E, colocando seu dedo indicador direito em seu lábio inferior, recitou, tocando a fechadura com a mão esquerda:
Sklussel olle doran.
A fechadura se abriu, soltando uma luz prateada. Helga ainda não conseguia controlar o efeito de luz que seus feitiços causavam e, portanto, sempre acabava realizando-os de modo muito chamativo. No seu caso, os feitiços brilham sempre forte e chamativamente. Há também magos cujos feitiços causam ruídos, rajadas de vento e até um forte magnetismo, dentre outros eventos. Tais efeitos são chamados de “reações mágicas” e são muito comuns e difíceis de se controlar. Quem mais tem dificuldade com elas são os magos mais jovens, pois os mais velhos aprendem a anular as reações e a até a aproveitá-las para recobrar sua força mágica.
Helga avançou até o corredor à frente e seguiu à direita. Havia pelo menos cinco portas de cada lado até o final, onde havia uma escada que subia à direita para o primeiro andar e dava em outro corredor lá em cima. Estava tudo muito escuro e o lugar cheirava a podridão e morte. Curiosamente, não havia espíritos neste corredor de baixo; Helga somente sentia-se sendo vigiada e o clima do local era extremamente macabro, mas continuava seu caminho até a ponta da escada quando, de repente, todas as portas se bateram ao mesmo tempo, fazendo-a levar um susto e soltar um gritinho agudo. “Droga!”, pensou Helga, “Preciso me controlar mais! Além de ficar emitindo luzes que nem uma boba, ainda fico dando gritinhos. Quanto menos chamativa tento ser, mais acabo chamando a atenção dos outros. Tenho certeza de que vão tentar entrar aqui agora mesmo, mas que saco...”. Porém, com a bagunça que estava lá fora, ninguém havia ouvido seu gritinho agudo, muito menos visto suas luzes chamativas ou imaginado que um gato camuflado, que na verdade era uma moça excêntrica, havia adentrado o hospital bem debaixo de seus narizes. E mesmo se soubessem disso, quem ligaria para um gato ou imaginaria que ele poderia ser uma maga transformada em meio a uma situação como aquela? Helga se preocupava mesmo em demasiado com certas banalidades.
Ela seguiu correndo até a escada e a subiu apressada. Não que tivesse medo de espíritos, mas o clima do lugar era arrepiante. Helga não gostava muito do escuro e se sentia totalmente desprotegida dentro daquele hospital que emanava energia negativa. Sentia calafrios o tempo todo, como se estivesse sendo avisada de que se aproximava do perigo. Quando chegou lá em cima, deparou-se com dezenas de espíritos agitados que vinham do final do corredor e saíam por uma janela que se situava aproximadamente no meio do mesmo. “Então é por aqui que eles saem...”, pensou ela, apressando-se para realizar um feitiço para afastá-los, quando de repente pisou em falso e tropeçou, quase caindo novamente de cara para o chão. Equilibrando-se com a perna direita, retomou sua postura e percebeu que vários deles vinham em sua direção rapidamente. Então, deu um passo para trás e se esquivou de um especialmente rápido, que tentou empurrá-la em direção à escada. Mesmo sabendo que ele não conseguiria fazer isso sozinho por falta de força, não baixou a guarda, pois havia uma multidão deles se aproximando a cinco metros de distância. O barulho era infernal; os espíritos berravam ameaçando Helga, que prontamente se esqueceu do dilema entre ser chamativa ou prática e realizou um feitiço para repeli-los, emanando uma luz azul pelo corredor inteiro. Era óbvio que a esta altura, todos lá fora já a haviam percebido, porém a prioridade máxima era dar fim àquela situação. Qualquer outro problema poderia ser repensado depois. Então, Helga se apressou e, passando por entre os espíritos, que se assustavam e se afastavam ao vê-la, continuou a correr até o fim do corredor escuro e virou à esquerda, saindo em mais outro corredor cheio de fantasmas horríveis e de aparência pútrida. Ela estava começando a se sentir nauseada por causa do forte cheiro de morte do lugar. Seu estômago se revirava enquanto tentava passar pela multidão de seres horrendos e maléficos. Suas aparências eram as piores que ela já havia visto em toda a sua vida. Afinal, teriam eles vindo direto do inferno?
Tentando conter sua náusea ao máximo, ela avistou, finalmente, a porta pela qual saiam todos aqueles seres sujos e apressou-se a entrar pela mesma. Lá dentro, porém, deparou-se com uma cena um tanto inesperada.