sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Capítulo IV - O Círculo de Magia


Um rapaz, talvez um dos pobres desinformados que causaram toda aquela algazarra, estava sendo sugado para o outro mundo e se encontrava totalmente desacordado. Seu corpo já havia sido absorvido até a altura do peito e ele estava debruçado com o rosto caído diretamente no chão, enquanto se afundava mais ainda pela fenda, que a esta altura havia se esticado consideravelmente. Helga, pensando: “Saco. Era só o que me faltava, ter ainda que salvar um dos imbecis mal comportados que me deram todo este trabalho. Espero que ele receba algum tipo de castigo depois.”, correu até o moço e começou a puxá-lo pelos braços, ao que ele parcialmente acordou e disse-lhe fracamente, como que se esforçando muito, algo que ela não entendeu. 
 – Fique quieto. Você não sabe e nunca vai saber o erro que cometeu –, disse Helga rispidamente, aplicando-lhe um feitiço de sono. Ele, sem ao menos entender qualquer palavra, caiu fora de si novamente, enquanto era completamente puxado por ela para fora da fenda. “Como imaginei”, pensou ela, ao contemplar o moço que havia acabado de salvar, “aconteceu o pior”. A parte do corpo que havia adentrado o mundo espiritual estava completamente machucada. Era como se ele houvesse tido seu corpo inteiramente arranhado, ou se tivesse se ralado todo. “O ignorante ainda está nu, para completar a cena... humanos realmente se metem em problemas por simples burrice”, pensou ela, imaginando o que poderia fazer para ajudá-lo. Porém, como agora saíam mais espíritos ainda pelo buraco que havia sobrado, ela o deixou recostado a uma das paredes do cômodo, cortou a palma de sua mão direita com uma adaga que tirou de dentro de seu vestido e, com o sangue que escorria, começou logo a desenhar um círculo de magia em volta do buraco espiritual. Qualquer um que lá chegasse além dela, de qualquer outro mago e dos que haviam realizado o ritual deparar-se-ia com a cena de uma louca fantasiada a utilizar o próprio sangue como tinta para desenhar no chão e um menino totalmente injuriado recostado a uma parede.
Os espíritos que saíam pela fenda olhavam para Helga e se afastavam amedrontados por conta do feitiço protetor que ela havia jogado sobre si mesma. Isso a ajudava a não se desconcentrar enquanto fazia o círculo mágico, pois iria utilizar uma magia muito complexa e precisava de seu potencial ao máximo. Até que ouviu o barulho de pessoas subindo a escada e correndo pelo corredor. “Eles estão abrindo porta por porta para checar”, imaginou Helga, “se há alguém aqui dentro”. Os homens, por volta de cinco, já estavam a três portas perto do cômodo onde ela se encontrava quando, faltando somente alguns símbolos para o círculo ficar pronto, Helga teve que interromper seu trabalho para pensar sobre o que fazer quando fosse vista. “E agora, o que eu faço? Preciso dar um fim a isto tudo logo ou a situação pode se agravar mais ainda. Mas esses caras... Pense, Helga, pense!”, dialogava com seus botões, desesperada com a situação, até que teve uma idéia. “Já sei! Vou ter que usar um pouco de força e concentração, mas não importa!”, pensou consigo mesma, enfiando a mão esquerda em seu decote e revirando os próprios seios, retirou de um bolso que ficava do lado de dentro de seu vestido algo que lembrava uma folha de papel recortada em forma oval e com as bordas adornadas com símbolos estranhos, que lembravam arabescos. Centralizado na folha, havia um pequeno círculo de magia, no qual Helga pingou um pouco de seu sangue. O papel imediatamente começou a brilhar, então ela recitou um encanto em voz baixa e delicadamente fechou a porta.
Havia cinco policiais no corredor. Eles estavam revistando o antigo hospital, pois havia sinais claros de que alguém o havia invadido aquele dia. A porta dos fundos estava arrombada e fora deixada aberta por alguns delinqüentes, três dos quais haviam sido encontrados e tratados por um monge e, depois, levados ao hospital por uma ambulância chamada pelo mesmo. De acordo com a denúncia, havia sumido um adolescente, visto pela última vez por seus colegas dentro do hospital abandonado. Além disso, pessoas que estavam lá fora haviam ouvido estrondos de portas batendo, um gritinho, gente correndo e coisas caindo, além de terem visto algumas luzes coloridas que sumiam rapidamente. Os oficiais sentiam calafrios horrendos e tinham a sinistra sensação de estarem sendo observados por todos os lados desde o começo do dia, mas principalmente depois de adentrar aquele local.
– O que foi aquilo? – perguntou o Delegado Hirata discretamente, ao avistar uma luz que parecia vir da última porta do corredor à esquerda – Vi algo parecido com um brilho verde! Talvez alguém esteja se escondendo no último cômodo. Cassetetes e armas em punhos! Atenção!
                Hoshikawa, um policial novato que sempre tentava mostrar serviço, se precipitou e, sob ordem alguma, posicionou-se à frente de todos. Hirata pensou em adverti-lo, mas a situação era muito delicada para qualquer discussão. Então, deu-lhe um toque no ombro e lhe lançou um olhar repreensivo. O novato, por sua vez, entendeu o recado e forçadamente cedeu a passagem para os outros quatro, ficando em último lugar. Então, todos começaram a se aproximar cautelosamente do fim do corredor, onde supostamente estaria a última porta, organizados em fila. Ao todo, eram o Delegado Hirata, seguido pelos experientes Nakashima e Morioka, o jovem Yamazaki e, por último, o novato, todos devidamente fardados. A única iluminação era a vinda das lanternas que, curiosamente, tremiam nas mãos dos policiais já nervosos o bastante. O clima era de extrema tensão seguida de medo e eventuais náuseas, pois por todo o local espalhava-se um cheiro de decomposição, como se algo ali tivesse morrido e apodrecido. Soprava, também, em todas as direções um estranho e leve vento de origem desconhecida por eles, mas que destacava mais ainda o cheiro pútrido do ambiente macabro. Era como se houvesse vários pássaros invisíveis passando à sua volta. Além disso, eles tinham a impressão de estar ouvindo pequenos sussurros, como que cochichos ininteligíveis, mesmo não havendo mais ninguém à sua volta.
O Delegado, dando um sinal para que Nakashima prosseguisse para o lado direito da porta, posicionou-se à esquerda da mesma com sua arma de balas de borracha em punho. Ao sinal seguinte, Nakashima moveu a maçaneta e abriu a porta com extrema destreza, ao que todos reagiram pulando para dentro do cômodo, que estava totalmente escuro e quase vazio. As únicas coisas em especial eram uma cadeira tombada e uma mesa recostada no canto esquerdo, por sinal extremamente empoeiradas. Havia também um armário cheio de frascos velhos sem uma das portas. Alguns se encontravam quebrados, mas não havia nada que lhes chamasse a atenção. Assim que começaram todos a investigar as paredes e a janela, que parecia impossível de ser aberta facilmente, a porta inesperadamente fechou-se em um baque súbito, dando-lhes o mais forte susto dos últimos meses ou anos. Hoshikawa se atirou ao chão; Nakashima, Morioka e Yamazaki ficaram estatelados e não conseguiram reagir de qualquer forma por alguns segundos, tamanho fora-lhes o sobressalto. O Delegado Hirata disparou inutilmente algumas balas de borracha em direção à porta, porém nada mais aconteceu.
                Helga estava satisfeita por ter despistado os oficiais. Ela havia aplicado à porta do cômodo onde se encontrava um portal que a ligava ao quarto ao lado, cuja entrada estava trancada. Portanto, qualquer um que tentasse passar pela porta acabaria por entrar para o cômodo vizinho, juntando-se aos policiais. Pelo menos por algum tempo, eles estariam detidos, enquanto ela poderia terminar seu feitiço. Então, vendo que sua ferida já estava quase se secando, teve que abri-la mais uma vez, cortando-a mais profundamente e dando um urro de dor do modo mais possivelmente discreto. “Imagine a cicatriz que isso ficaria se não houvesse meios mágicos de cura”, pensou ela, aterrorizada, terminando de desenhar os sinais que faltavam.
                O círculo estava completo e, talvez por estarem intimidados por Helga, não saíam mais seres do outro mundo pela fenda. Ela, então, preparou-se para começar a cerimônia de fechamento. Posicionou o dedo indicador direito sobre seu lábio inferior e tocou o círculo de magia com a mão esquerda, enquanto proferia as palavras mágicas necessárias. O círculo começou a brilhar intensamente e a fenda a se fechar. Era como se estivesse sendo costurada por agulhas e linhas invisíveis, ou como se uma ferida em forma de rasgo começasse a se cicatrizar sozinha fechando-se a partir de suas extremidades. A luz se tornava cada vez mais intensa e vermelha. Enquanto a fenda se fechava, ouviam-se urros e choro vindos do outro mundo. Então, a construção e suas redondezas começaram a tremer fortemente, como se um terremoto as abalasse em especial e Helga ouvia do quarto ao lado os policiais assustados falando muito alto e o barulho de vários vidros quebrando ao chão. Tudo foi se intensificando ao ponto de Helga entrar em um estado de torpor temporário devido às ondas espirituais que a magia soltava, quando de repente o feitiço se completou e a luz sumiu. Os tremores pararam depois de alguns segundos, mas lá fora soava um alarme de situação emergencial. Helga, um pouco tonta, acendeu um pouco de fogo com sua mão e correu até o moço que estava recostado na parede para ver como ele estava. Ele, inconsciente e debilitado, parecia estar prestes a morrer, o que a deixou muito preocupada. Ela, então, passando o fogo para seu cabelo, meteu novamente a mão por entre os seios e tirou de dentro de seu vestido um pequeno frasco tampado. Dentro do que mais parecia um tubo de ensaio enfeitado com pequenos desenhos prateados de luas e estrelas, havia um líquido fosforescente, cuja metade ela derramou dentro da boca do garoto injuriado. “Acho que agora, já não há mais preocupação. Só preciso alterar sua memória”, pensou ela, esperando que o moço despertasse. Ele, depois de aproximadamente cinco minutos, abriu seus olhos vagarosamente, contemplando Helga e suas peculiares vestimentas. Ela, por sua vez, fixou seus olhos nos do moço que, por um instante ficou totalmente estatelado para, logo em seguida, cair no sono outra vez. Então, deixando-o como estava, Helga guardou o recipiente com o que sobrou do líquido (que na verdade era uma poção usada em primeiros socorros) em seu vestido novamente e foi até a porta, quebrando o feitiço que havia aplicado para despistar os policiais. Em seguida, ainda ouvindo a agitação deles trancados no quarto ao lado, abriu a porta de seu cômodo e saiu para o corredor, transformando-se no gato camaleão e correndo pelos corredores do hospital novamente até voltar à janela pela qual havia entrado. O clima continuava o mesmo: havia espíritos pútridos em todos os lugares e o desagradável cheiro de defuntos estava espalhado pelo ar. Ao sair pela janela, ela notou que o caos na cidade continuava o mesmo. Havia um grupo de pessoas se espancando na frente do hospital, gente se mordendo em outro canto, pedras sendo tacadas para todos os lados por uma senhora totalmente descontrolada e aviõezinhos de brinquedo incendiados voando de uma janela onde se encontravam algumas crianças enlouquecidas. Pessoas corriam de um lado pro outro desesperadas e eram perseguidas por outras totalmente fora de si. Fantasmas horrorosos vagavam por todos os cantos; alguns, atiçando as pessoas, outros as possuindo e um grupo distinto berrando ao léu. Helga sabia que sua missão não havia terminado. Precisava ativar a “Gestesbol” para aprisionar todos os espíritos, mas antes precisaria de um meio de atraí-los para perto de si. Então, pensou um pouco e chegou a uma conclusão: usar a si mesma.
                Ela atravessou a rua, foi para trás de um carro capotado na esquina e voltou à sua forma original. Então, desativando o bracelete “D.A.”, seu poder mágico começou a ficar descontrolado e, obviamente, a chamar a atenção dos seres pútridos do outro mundo. Helga desativou o feitiço protetor que havia jogado sobre si mesma e começou a se concentrar para expandir sua aura o máximo que pudesse. Então, por um segundo, tudo parou. As pessoas possuídas deixaram o que estavam fazendo e olharam todas ao mesmo tempo em direção ao lugar onde Helga estava. Mesmo sem poder vê-la por trás do veículo, começaram a andar até o lugar onde estava, como se fossem atraídas por algo em comum. O mesmo fizeram os seres vagantes, que começaram subitamente a se dirigir a ela, vindo de todos os cantos da cidade e se amontoando no ar a formar algo parecido com uma grande multidão flutuante. Ao que lhes parecia, havia alguém com muito poder para alimentá-los chamando-os em direção a si. As pessoas possuídas começaram, de repente, a cair desacordadas ou a voltarem a si, enquanto que os seres que as controlavam saíam para se juntarem aos outros. Cidadãos que estavam brigando, ao verem pessoas caindo estateladas de repente, pararam de se espancar e, como se tivessem tomado um banho repentino de água fria, olharam estupefatos à sua volta, percebendo o estrago catastrófico que havia de alguma forma acontecido ali. Policiais e ambulâncias continuaram correndo por todos os lados enquanto bombeiros apagavam o fogo que se espalhava vorazmente a partir de diversos pontos. Tudo ainda estava fora de controle, mas o povo parecia de algum modo mais normal.
                Então, mesmo podendo ser vista pelas pessoas mais próximas, Helga começou a colocar seu plano em prática: enfiou a mão pelo decote e retirou, de dentro de seu vestido, uma espécie de báculo em cuja extremidade havia uma esfera parcialmente transparente, porém toda colorida. Era como se nuvens de cores se espalhassem em seu interior: uma peça excêntrica, mas ao mesmo tempo bela. Recitando um feitiço, ela ergueu o báculo em direção aos seres vagantes que se aglomeravam ao seu redor, concentrando-se ao máximo. Então, a esfera da extremidade, ou “Gestesbol”, ficou totalmente negra, emitindo uma forte luz avermelhada.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Capítulo III - O Finado Hospital Matsutake


Olhos de cor verde fluorescente... Caninos tão grandes ao ponto de sair pela boca e chegar ao queixo... Fluidos corporais nojentos vazando por entre escamas grotescas e um cheiro de podridão que invadiu todo o compartimento de cargas... Além de tudo isso, um arrepio na espinha tão forte como nunca. Foi isso que o moço, que inicialmente estava mal intencionado, viu e sentiu. Aterrorizado pela visão nauseante que se projetava à sua frente, voltou-se para a saída do compartimento, empurrou a porta, que estava semicerrada, e saiu correndo tão velozmente como nunca havia feito em sua vida. Helga, aliviada, voltou à forma de mocinha japonesa, desta vez certificando-se de estar totalmente a rigor, espiou pela saída para verificar se havia alguém do lado de fora do caminhão, pulou para fora e saiu andando como se nada tivesse acontecido. Por dentro, ela gargalhava ao se lembrar da cara assustada do tarado do caminhão quando contemplou sua cruel criatividade. Mesmo se o caminhão lhe pertencesse, Helga tinha certeza de que ele não voltaria até lá de modo algum sozinho. Se algum dia voltasse, é claro. Como a cidade já se encontrava em estado de caos, não seria estranho se por acaso aparecesse um monstro em um lugar qualquer. Por isso, ela nem se preocupava com o fato de ter se transformado e afugentado o pervertido com cara de mafioso.
Helga precisava se apressar, pois a situação da cidade ficava cada vez pior. Por onde quer que ela passasse, havia espíritos desordeiros causando todos os tipos de problemas e bagunçando tudo. Pessoas corriam gritando umas às outras e havia diversos indivíduos caídos em transe pelas calçadas. Alguns estabelecimentos comerciais haviam pegado fogo e pessoas possuídas faziam movimentos estranhos, ora rolando pela rua deitados, ora se retorcendo no chão ou se jogando contra paredes. Os moradores sãos não sabiam se saíam ou se ficavam em casa. Carros de polícia, bombeiros e ambulâncias passavam por todos os lados, seguidos pela imprensa, que neste dia estava totalmente inflamada em vigor.
Helga precisava pensar em um jeito de chegar logo à origem de tudo aquilo. Então, desativando o “D.A.” (Bracelete de Densidade) para poder canalizar mais sua força, concentrou todo o poder espiritual em seus olhos e tentou enxergar pela aura que se projetava pela cidade um ponto mais branco do que os outros. Assim, notou que a mais ou menos meio quilômetro do lugar onde se encontrava, a cor da aura ficava intensamente branca, o que significava que lá havia mais seres do mundo da morte. Helga também podia ver que quanto mais se aproximava do local, mais espíritos descontrolados havia pelas ruas. Além disso, alguns tentavam atacá-la enquanto estava andando, mas ela somente se esquivava e não lhes dava a mínima atenção. O que lhe importava era chegar ao devido lugar e cumprir sua missão perfeitamente.
Então, continuou seu caminho apressada como nunca, pois cada segundo contava para o sucesso de sua missão. A situação estava ficando totalmente fora de controle, e se ela tivesse que chamar outro mago para ajudá-la, não ganharia os méritos necessários para ser reconhecida pelo Mestre Elianov. Por isso, precisava ter no mínimo cem por cento de sucesso para poder voltar com honra a sua terra.
Helga corria pelas ruas dobrando esquinas e desviando de pessoas descontroladas e carros desgovernados que vinham em sua direção. Analisando a situação pelo que via, não pensava em uma explicação humanamente possível para o que estava acontecendo e pensava sobre de que modo o mundo humano lidaria com aquilo tudo. Mas isso era trabalho para Elianov, que sempre arranjava um jeito de influenciar no fluxo de notícias humanas em casos críticos como esse. Além disso, para uma primeira missão, ela estava até que se divertindo. Afinal, dizem que o primeiro trabalho no mundo humano é inesquecível, ou por ser terrível e aterrorizante, ou por ser simples demais. No seu caso, era a segunda opção somada a mais um pouco de adrenalina. “Seria isto um meio termo?”, pensou Helga. Afinal, ela só conhecia o mundo humano por instruções de treinamento ou histórias que havia ouvido anteriormente, e ver tudo ao vivo estava lhe sendo uma experiência um tanto complicada.
Chegando a cinqüenta metros do hospital abandonado, só faltava virar uma esquina quando, de repente, uma mulher toda descabelada e ofegante se atirou por trás de suas costas e se agarrou a seus pés, fazendo Helga levar um tombo e cair de cara no chão. Com o nariz sangrando, ela se virou para trás e tentou se desvencilhar da louca que estrangulava seus tornozelos, quando começaram a se aproximar mais dois homens e um menino claramente com a intenção de pular para cima das duas.
Então, pensando rapidamente, ela conseguiu livrar seu pé direito e dar um chute no rosto da mulher, que caiu desmaiada. Os outros, que se jogaram em direção a elas, caíram desacordados no momento em que tocaram Helga atingidos por um choque elétrico soltado pela mesma, tendo espasmos no chão e espumando pela boca. “O que foi que eu fiz?!”, pensou ela assustada, mas voltando-se para seu dever, disse para si mesma: 
– Não posso perder tempo, depois vejo o que aconteceu.
Então, apressou-se e dobrou a esquina à esquerda, avistando o finado Hospital Matsutake na calçada direita. Neste momento, porém, ela encontrou um contratempo: o hospital estava rodeado de pessoas enlouquecidas, policiais, ambulâncias e jornalistas com câmeras de televisão. Seria impossível adentrar o local sem ser vista ou interditada por alguém “em nome da lei”. Além disso, mesmo conseguindo invadir o hospital, seria percebida se utilizasse alguma magia muito extravagante lá dentro, o que a atrapalharia muito. Com seu nariz ainda sangrando, ela começou a pensar seriamente no que fazer, quando teve uma idéia: transformar-se novamente no gato camaleão. No resto, ela pensaria mais tarde. Então, voltou para a rua onde acabara de ser atacada e, vendo que não havia mais ninguém no local, enfiou-se por trás de um carro, reativou o bracelete mágico e se transformou, em meio à luz verde fluorescente característica, em sua “fantasia” favorita. Agora, correndo como nunca, voltou para a rua do hospital e tentou achar um jeito de atravessar a multidão. Seria perigoso se fosse atropelada ou pisoteada, o que era bem provável baseando-se no que se decorria diante de seus olhos. Então, atravessou para o canto direito da rua, subiu o muro de uma casa vizinha ao hospital, coincidentemente também abandonada e, pela cerca, seguiu até o terreno ao lado, invadindo-o sucessivamente. Pronto; agora, Helga se encontrava no quintal de seu destino final, repleto de fugitivos do mundo dos mortos e de energia negativa. A visão do lugar era horrenda: ali, se encontravam centenas de espíritos vagantes com as aparências mais mórbidas que ela já havia visto, berrando e correndo (ou voando) para todas as direções. Todos eles, é claro, perceberam também que Helga estava lá e começaram a se dirigir à mesma. Ela, pouco se importando, seguiu correndo em direção a uma janela que estava aberta e adentrou a construção, que parecia ter sido abandonada há anos. 
Helga estava em uma sala de espera, na parte frontal esquerda do hospital. Lá dentro, havia alguns bancos, revistas velhas e muito lixo espalhados pelo chão, uma televisão quebrada em cima de uma estante velha e um pequeno balcão. A janela pela qual havia entrado estava semi-coberta por uma cortina rasgada, de modo que era possível até observar um pouco o movimento lá fora e receber um pouco de luz. Havia uma porta do outro lado da sala, à qual Helga se dirigiu imediatamente. Ela teria que sair dali e passar por três corredores para poder chegar até a fenda. No momento, já conseguia de algum modo localizá-la por causa de sua proximidade e densidade espiritual. Então, tratou de voltar para sua aparência original, emanando um pouco de luz, e tentou abrir a porta que, por puro azar, estava trancada. “Legal”, pensou ela, “agora terei que fazer um feitiço e tenho certeza de que serei vista de lá de fora. Já não basta toda a luz que acabei de soltar para voltar ao normal... mas já que cheguei até aqui, é o que me resta a fazer”. E, colocando seu dedo indicador direito em seu lábio inferior, recitou, tocando a fechadura com a mão esquerda:
Sklussel olle doran.
A fechadura se abriu, soltando uma luz prateada. Helga ainda não conseguia controlar o efeito de luz que seus feitiços causavam e, portanto, sempre acabava realizando-os de modo muito chamativo. No seu caso, os feitiços brilham sempre forte e chamativamente. Há também magos cujos feitiços causam ruídos, rajadas de vento e até um forte magnetismo, dentre outros eventos. Tais efeitos são chamados de “reações mágicas” e são muito comuns e difíceis de se controlar. Quem mais tem dificuldade com elas são os magos mais jovens, pois os mais velhos aprendem a anular as reações e a até a aproveitá-las para recobrar sua força mágica.
Helga avançou até o corredor à frente e seguiu à direita. Havia pelo menos cinco portas de cada lado até o final, onde havia uma escada que subia à direita para o primeiro andar e dava em outro corredor lá em cima. Estava tudo muito escuro e o lugar cheirava a podridão e morte. Curiosamente, não havia espíritos neste corredor de baixo; Helga somente sentia-se sendo vigiada e o clima do local era extremamente macabro, mas continuava seu caminho até a ponta da escada quando, de repente, todas as portas se bateram ao mesmo tempo, fazendo-a levar um susto e soltar um gritinho agudo. “Droga!”, pensou Helga, “Preciso me controlar mais! Além de ficar emitindo luzes que nem uma boba, ainda fico dando gritinhos. Quanto menos chamativa tento ser, mais acabo chamando a atenção dos outros. Tenho certeza de que vão tentar entrar aqui agora mesmo, mas que saco...”. Porém, com a bagunça que estava lá fora, ninguém havia ouvido seu gritinho agudo, muito menos visto suas luzes chamativas ou imaginado que um gato camuflado, que na verdade era uma moça excêntrica, havia adentrado o hospital bem debaixo de seus narizes. E mesmo se soubessem disso, quem ligaria para um gato ou imaginaria que ele poderia ser uma maga transformada em meio a uma situação como aquela? Helga se preocupava mesmo em demasiado com certas banalidades.
Ela seguiu correndo até a escada e a subiu apressada. Não que tivesse medo de espíritos, mas o clima do lugar era arrepiante. Helga não gostava muito do escuro e se sentia totalmente desprotegida dentro daquele hospital que emanava energia negativa. Sentia calafrios o tempo todo, como se estivesse sendo avisada de que se aproximava do perigo. Quando chegou lá em cima, deparou-se com dezenas de espíritos agitados que vinham do final do corredor e saíam por uma janela que se situava aproximadamente no meio do mesmo. “Então é por aqui que eles saem...”, pensou ela, apressando-se para realizar um feitiço para afastá-los, quando de repente pisou em falso e tropeçou, quase caindo novamente de cara para o chão. Equilibrando-se com a perna direita, retomou sua postura e percebeu que vários deles vinham em sua direção rapidamente. Então, deu um passo para trás e se esquivou de um especialmente rápido, que tentou empurrá-la em direção à escada. Mesmo sabendo que ele não conseguiria fazer isso sozinho por falta de força, não baixou a guarda, pois havia uma multidão deles se aproximando a cinco metros de distância. O barulho era infernal; os espíritos berravam ameaçando Helga, que prontamente se esqueceu do dilema entre ser chamativa ou prática e realizou um feitiço para repeli-los, emanando uma luz azul pelo corredor inteiro. Era óbvio que a esta altura, todos lá fora já a haviam percebido, porém a prioridade máxima era dar fim àquela situação. Qualquer outro problema poderia ser repensado depois. Então, Helga se apressou e, passando por entre os espíritos, que se assustavam e se afastavam ao vê-la, continuou a correr até o fim do corredor escuro e virou à esquerda, saindo em mais outro corredor cheio de fantasmas horríveis e de aparência pútrida. Ela estava começando a se sentir nauseada por causa do forte cheiro de morte do lugar. Seu estômago se revirava enquanto tentava passar pela multidão de seres horrendos e maléficos. Suas aparências eram as piores que ela já havia visto em toda a sua vida. Afinal, teriam eles vindo direto do inferno?
Tentando conter sua náusea ao máximo, ela avistou, finalmente, a porta pela qual saiam todos aqueles seres sujos e apressou-se a entrar pela mesma. Lá dentro, porém, deparou-se com uma cena um tanto inesperada.

domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo II - Desventuras em uma terra desconhecida

Tudo estava imerso na maior escuridão. Não havia sequer um mínimo rastro de luz, o que deixou Helga totalmente confusa. “Onde é que eu fui sair?!”, perguntou-se a si mesma.
 Voierstekken –, recitou ela estendendo sua mão direita, que imediatamente pegou fogo e iluminou o lugar todo. Helga, é claro, era imune ao fogo criado por si mesma. Portanto, somente deveria tomar cuidado com os objetos à sua volta, que poderia utilizar seu fogo à vontade. Ela se encontrava dentro de um quarto parecido com um depósito, onde havia todo tipo de ferramentas e apetrechos utilizados em cerimônias religiosas. Tudo estava impecavelmente arrumado e limpo, o que a deixou um pouco perplexa. “Que senso de arrumação maravilhoso! Preciso aprender com estas pessoas.”, pensou ela. A única coisa que não batia com o ambiente eram algumas facas e pequenas foices um pouco enferrujadas que estavam penduradas por uma barra ligada ao teto em um certo canto do cômodo. Em uma das extremidades do recinto, havia uma porta corrediça feita de madeira e papel que dava para outra sala e na outra, uma espécie de portão de madeira que com certeza iria levá-la para fora. Helga tentou abrir o portão de madeira em vão. Ele parecia estar trancado por fora. Mesmo tendo poder e habilidades suficientes para abrir o portão em menos de um segundo, ela deveria ser o mais discreta que conseguisse, pois poderia chamar a atenção de qualquer um que estivesse lá fora; isto é, se tivesse alguém naquele lugar. Um silêncio mortificante se espalhava por todos os lados, mas Helga se sentia totalmente em paz. Ela só precisava sair dali o mais rápido que pudesse e encontrar o lugar onde a fenda para o mundo espiritual havia sido aberta. Então, apagando o fogo de sua mão, deixou o quarto escuro novamente. Dirigiu-se cautelosamente até a porta corrediça, contando cada passo que dava em meio à escuridão e posicionou sua mão para abri-la. O silêncio se espalhava totalmente por cada canto do templo. Cada batida de seu coração podia ser ouvida como a batida de um tambor ressoando pelo quarto inteiro. Depois de tomar coragem, ela finalmente empurrou a porta, que se deslizou para a esquerda fazendo um barulho agudo e estridente. Tarde demais. O rangido foi ouvido em cada canto do templo. Imediatamente, ouviram-se passos rápidos do lado de fora, vindo em direção ao cômodo em que Helga se encontrava.  “Droga”, pensou, entrando rapidamente no outro cômodo e deslizando a porta corrediça para fechá-la de novo, “Vou ter que utilizar a metamorfose...”. Pensando assim, logo recitou bem baixo o feitiço necessário para se transformar em seu ser favorito: um gato camaleão. Tal transformação era muito útil e prática em momentos assim, e como Helga apreciava os gatos e a praticidade, era como matar dois coelhos com uma única cajadada.
Em um único segundo, Helga sumiu em uma luz verde e, em seu lugar, apareceu um gato que por sua vez se camuflou e sumiu também. O portão de madeira do cômodo ao lado se abriu estrondosamente e ouviu-se alguém apressado entrar por ele.
– Tenho certeza de ter visto uma luz estranha lá de fora! – cogitou o monge consigo mesmo, – Também sinto uma presença estranha aqui. Quem quer que esteja aqui dentro, mostre-se agora mesmo! –, disse ele em voz alta, mas Helga infelizmente não entendia japonês e simplesmente continuou em seu posto esperando que ele fosse embora. Porém, aconteceu o contrário. Totalmente desconfiado, ele entrou justamente no cômodo em que Helga se encontrava, deslizando a porta corrediça com tamanha força e estrondo que a maga acabou se assustando e dando um pulo pra trás.
O monge olhou diretamente para a direção onde ela estava, como se a estivesse encarando. Ela, mesmo estando camuflada e praticamente invisível, não conseguiu esconder seu assombro diante do olhar direto e lancinante que recebera e instintivamente desfez sua camuflagem e disparou pela porta corrediça que havia sido deixada aberta, atravessando o outro cômodo e indo para fora. Ao sair, se encontrou em um lindo espaço aberto repleto de árvores e folhas secas características do outono japonês. À sua volta, encontravam-se as várias repartições do templo, construídas grandiosamente em uma arquitetura característica e histórica. Helga tinha saído de um pequeno depósito que ficava separado da construção principal. “Talvez, este lugar tenha mais de mil anos”, pensou ela assombrada pela beleza histórica do local. Porém, continuou correndo e escalou uma árvore, pois o monge a estava procurando sagaz e ferozmente. “Acho que agora, estou mais segura. Ele ainda não me percebeu aqui.”, pensou Helga com seus botões enquanto se camuflava na árvore.
De cima da árvore, ela contemplou a paisagem que se estendia a toda sua volta. O templo se encontrava acima de uma montanha relativamente alta e havia uma grande escada de pedra uniformemente preenchida por “Toriis” que levava ao pé da montanha e que provavelmente era o único meio de acesso ao templo, escondido lá encima. Tudo era coberto por pinheiros desde o topo até a parte de baixo, onde eles diminuíam drasticamente e formavam uma espécie de fronteira com as construções e casas da cidade.
O monge se acalmou. Mesmo de algum modo ainda conseguindo sentir a presença estranha de Helga no templo, ainda precisava cuidar dos três moços desacordados que tinha trazido do pé da montanha. Eles estavam claramente com uma legião de “encostos”, ou seja, espíritos que se fixam em uma determinada pessoa e a atormentam, e precisavam ser purificados imediatamente. Então, ele se dirigiu aos aposentos internos e começou a se preparar para purificá-los. Enquanto isso, Helga percebeu, olhando de cima da árvore, que a cidade emanava uma aura branca, ou seja, de morte, e sentiu uma grande atividade espiritual pelos arredores da montanha. Assim, aproveitou a ausência do monge e desceu da árvore ainda camuflada, correndo o máximo possível para descer a grande escada que a levaria até a cidade. O próximo passo era ir até o lugar onde se encontrava a grande fenda e fechá-la. Mas para isso, ela precisaria voltar a ter uma forma humana, pois teria que correr muito até chegar ao lugar onde se encontrava seu primeiro objetivo. Como não sabia falar a língua local, mesmo que estivesse disfarçada de japonesa não conseguiria pegar um táxi ou muito menos um ônibus. Porém, se ficasse em sua forma original, chamaria mais atenção do que todos os acidentes que havia acontecido desde a madrugada. Aos olhos de humanos normais, ela era uma personagem realmente chamativa: tinha o olho esquerdo castanho e metade do direito verde. Possuía cabelos escuros e longos, tinha a pele extremamente branca com algumas sardas no rosto e usava roupas tipicamente magas. Além de tudo, tinha por volta de 1,75 m de altura, o que no Japão seria uma altura consideravelmente grande para uma mulher, e suas várias jóias exageradas e roupas escuras cheias de rendas e babados poderiam ser o marco inicial para que qualquer ser humano em sã consciência a notasse sem grandes dificuldades. Se alguém visse uma pessoa assim correndo na rua, ficaria assustado com toda a razão. Nem fantasias humanas eram tão extravagantes assim. Por isso, Helga recitou um feitiço e se transformou em uma japonesinha assim que chegou perto do fim da escada do templo.
Ela parou por um momento assim que terminou de descer a escada, passando pelo último Torii. Olhou para a rua que se projetava à sua frente: havia pessoas andando normalmente, mas misturadas a elas, podia ver claramente vários espíritos confusos. Concentrou-se um pouco para sentir em que lugar da cidade a densidade espiritual estava mais forte, pois provavelmente, tal seria o local no qual a fenda se encontrava aberta. Porém, como em todos os lugares havia todos os tipos de fantasmas e seres espirituais espalhados, estava difícil de saber onde é que a concentração era maior, ou qual era seu ponto principal. Se ela não tivesse parte de seu poder espiritual bloqueado até os dezoito anos de idade, poderia reconhecer o local em um único instante; mas este não era o caso. Seus poderes, muito elevados desde criança, eram considerados como uma ameaça nas mãos de uma jovem inexperiente, e por isso haviam sido selados por Elianov quando de sua vinda ao mundo mago. Ao completar dezoito anos e ter suas habilidades reconhecidas oficialmente, o selo se romperia automaticamente. Por isso, ela precisava dar o máximo de si mesma em suas missões, aplicando em um ano o que havia estudado por uma vida inteira.
Helga, sem ter opção, resolveu procurar por si mesma o lugar onde a fenda estava aberta. Os espíritos em questão não pareciam nada amigáveis, pois vinham de uma parte do mundo espiritual onde ficavam separados somente os condenados. Resumindo, eram todos um tanto malvados e enlouquecidos.
Ela, então, tentou sair do meio das árvores devagar e discretamente em direção à rua, que estava um pouco movimentada. Porém, alguns transeuntes imediatamente pararam de andar e a fitaram. “Como assim? O que tem comigo?!”, pensou Helga assustada, mas continuou a andar como se nada tivesse acontecido.
– Vestindo fantasias num dia desses?! Você não está vendo a situação da cidade?! Vá chamar a atenção em Tóquio, sua sem vergonha! – disse uma senhora de idade que passou por perto dela. Helga, sem entender palavra alguma, continuou a andar como se nada lhe tivesse acontecido, tentando atravessar a rua o mais discretamente possível. Neste ponto, olhou para as pessoas à sua volta: grande parte delas a olhava com rostos assustados, alguns parecendo bravos, outros achando graça. “Mas o que é que está acontecendo? Quanto mais discreta eu tento parecer, mais sou perce...!”, Helga não terminou sua cogitação. Simplesmente olhou para as próprias roupas e percebeu que não as tinha trocado. Grandíssima estúpida. Se tivesse prestado mais atenção na hora de fazer o feitiço... mas agora, era tarde demais.
Sem saber o que fazer, retribuiu aos olhares com um sorriso sem graça e continuou a andar à procura de algum lugar sem ninguém onde pudesse se esconder e “se trocar”. Então, avistou um caminhão de carga com as portas do compartimento de carga abertas. Não pensou duas vezes e, quando viu que não estava passando uma única alma viva por perto, lá se adentrou. Logo refez o feitiço e se preparou para sair de dentro do compartimento, quando de repente apareceu um moço excentricamente vestido do lado de fora. Ele estava pronto para fechar as portas, mas acabou vendo Helga e se assustou inicialmente, fitando-a por alguns segundos. Ela ficou totalmente sem reação. O que deveria fazer? Só poderia apagar a memória de alguém em casos de extrema necessidade...
O moço se vestia de um jeito extravagante. Estava de terno e óculos escuros, e era possível ver, em seu pescoço, pequenas partes de uma tatuagem que provavelmente ocupava seu peito e suas costas inteiramente. Com um rosto malicioso, ele tirou os óculos escuros, entrou no compartimento e semicerrou as portas por dentro. Então, ligando uma lanterna que havia tirado do bolso interno de seu paletó, dirigiu sua voz a Helga:
– Você estava me bisbilhotando, mocinha? Foi mandada pela polícia? Acho que pra te soltar, vou ter que receber uns favores... – dizendo assim, veio se aproximando dela, que por sua vez foi se recuando até encostar-se a uma caixa. Ela, sem entender palavra alguma do que ele dizia, começou a se sentir mal. Primeiramente, porque abominava lugares muito fechados e já estava se sentindo sem ar apenas por estar dentro daquele caminhão. Depois, vinha o fato de ter percebido somente pelo olhar do moço as suas más intenções. Helga realmente se sentia desconfortável com tal situação... Do jeito que as coisas andavam, a única solução seria utilizar seus poderes pra se defender. Ela só poderia utilizá-los na frente de humanos em casos críticos, por isso pensava sempre muito bem antes de tomar qualquer decisão drástica. Porém, juntando a pressa a seus objetivos principais, seu uso se fazia necessário. Assim, Helga decidiu por fim aplicá-los no pervertido.

sábado, 7 de maio de 2011

Capítulo I - A Primeira Missão de Helga Van Dijk


Helga estava apressada. Havia recebido ordens para atravessar a barreira para o mundo dos humanos, pois havia uma emergência lá do outro lado. Emergências, emergências... sempre surgindo nas horas mais inoportunas. Talvez, se não fossem tão repentinas, não seriam tão incômodas. Mas resolver problemas no mundo humano era necessário para que ela tivesse suas habilidades aprovadas no Mundo dos Magos, ou na língua oficial, Wittklandt. Ela estava em processo de teste de níveis e execução de magia com o objetivo de ser promovida de cargo no sistema de segurança oficial do governo. Para tanto, precisaria cumprir alguns trabalhos com destreza e ser aprovada pelo mestre Elianov, um dos magos que distribuem as funções no estado bruxo. Helga era o orgulho do mundo mágico: tinha somente 17 anos e já possuía níveis altos de magia suficientes para realizar trabalhos que magos normais só conseguiriam cumprir com 20 anos de estudos intensivos em magia. Por isso, havia alcançado o cargo de Maga Inspetora provisória, e de acordo com seu desempenho, seria ou não promovida a Maga Inspetora Oficial quando completasse 18 anos de idade.  
Desta vez, um grupo de jovens japoneses havia causado problemas ao invocar espíritos em um jogo estúpido que lhes havia sido passado por algum mago mal intencionado. Era serviço de Helga consertar a situação, fechando o portal para o mundo espiritual que havia sido deixado aberto em um hospital abandonado numa cidade interiorana localizada no norte do Japão. Porém, como poderia uma maga super branca, com olhos de cores diferentes e roupas extravagantes aparecer de repente no Japão e realizar tal trabalho sem chamar a atenção das pessoas? Fácil: Helga possuía habilidades metamórficas. Era só se transformar em algo não chamativo e cumprir sua função discretamente, que não haveria problemas.
O grupo de meninos havia participado de um jogo cujas instruções lhes foram deixadas em um diário antigo escrito muito tempo atrás por um mago aprendiz. É óbvio que o objetivo era colocar algum curioso em apuros, e foi exatamente o que aconteceu. O diário foi encontrado no sótão da casa de um dos garotos, Akio, que ficou extremamente curioso e decidiu testar as instruções juntamente com os amigos em um lugar dito como mal assombrado.
Depois de algumas pesquisas, o local escolhido foi o hospital abandonado Matsutake, situado em uma pequena cidade na província de Aomori. O hospital era coincidentemente perto da vizinhança dos meninos e havia rumores de que à noite eram ouvidos gritos terríveis de dor e desespero por quem passasse lá por perto.
Hiroshi, o “cabeça” do grupo, escolheu uma determinada noite para o grupo de quatro amigos adentrar o local e realizar o jogo. As instruções deixadas no diário pareciam um pouco estranhas, mas a graça de jogar estava exatamente nesse ponto. Como todos eles eram maníacos por assuntos sobrenaturais, realizaram o feito sem grandes dificuldades. Os quatro tiraram suas roupas e lavaram seus corpos com um elixir preparado de acordo com instruções anotadas no antigo diário. Depois, fizeram os desenhos exatamente como indicados no manual, sendo o mais fiéis possível para com o conteúdo descrito, e formaram um círculo, no meio do qual foi deixado um facão. Por último, quando deu 2:00 horas da manhã em ponto, recitaram o texto mágico que acompanhava as instruções em uma língua desconhecida. “Isto não é alemão?”, pensou Uchida.
“Geisteswelt zain dor’o openan. Geisten’a Manenwelt nast mogan inkoman, Maen’a Geistenwelt nast mogan oisgean.”, recitaram todos juntos. A pronúncia parecia algo impossível de se dizer, mas milagrosamente saiu perfeita.
Passou-se um minuto e nada aconteceu. Eles estavam com frio e muito medo do lugar, que tinha um ar totalmente sinistro, mas esperaram ansiosamente por qualquer resultado. Então, quando bateu 2:02, o facão que havia sido deixado no meio do círculo se moveu repentinamente e se fincou no chão com grande força e um barulho estridente ecoou por todo o hospital. De repente, ouviram-se diversos gritos desesperados de pessoas vindos de todos os lados e um cheiro de morte e sangue invadiu todo o local. Os meninos, estupefatos, levantaram-se, pegaram suas roupas e fugiram correndo. Estavam em uma antiga sala de cirurgia e precisariam atravessar três corredores diferentes para poderem sair do hospital. Porém, a partir do momento em que saíram da sala, começaram a aparecer pessoas sobrenaturalmente pálidas por todos os lados. Eles haviam realizado uma cerimônia para abrir um portal para o mundo espiritual, fazendo com que os seres do outro mundo pudessem transitar livremente para o mundo humano e vice-versa. Além disso, como haviam feito contato com o mundo espiritual, podiam ver todos os espíritos atordoados que saiam da antiga sala de cirurgia. Era uma visão horrível. Só os gritos e murmúrios dos mortos causavam arrepios tremendos; vê-los, então, era indescritivelmente grotesco. Muitos eram projeções de corpos decompostos caindo aos pedaços. Outros tinham partes de animais mescladas a seus corpos, e alguns eram somente sombras disformes com rostos desfigurados.
Correndo, três dos meninos saíram do hospital meio vestidos, meio nus, sem notar que hes faltava um dos companheiros. Onde quer que olhassem, viam pessoas podres e pálidas vindo em sua direção e dando guinchos terrivelmente agudos. Então, instintivamente se dirigiram a um templo xintoísta que se situava a mais ou menos um quilômetro do hospital. A entrada do templo era perto, mas para chegar até ele em si, teriam que subir uma longa escada que os levaria até o topo de uma montanha. Durante o caminho, erguiam-se diversos “Torii”, uma espécie de fronteira entre o profano e o sagrado, erguida sempre em templos japoneses. Ao atravessar três “Torii”, eles enxergaram a figura de um sacerdote vindo ao longe, e então suas visões ficaram embaçadas e os três perderam a consciência.
Helga estava se preparando para atravessar o portal oficial para o mundo humano, que se consistia de um espelho redondo de mais ou menos 5 metros de diâmetro deitado horizontalmente acima de uma elevação que havia no chão do recinto. O espelho era todo enfeitado com esmeraldas e ouro, o que lhe dava uma aparência mística. Para alcançá-lo, era preciso subir por meio de uma escada de sete degraus. Tal portal se situava no “Gaudenphalkespalais”, ou “Palácio do Falcão Dourado”, uma repartição do governo onde eram realizadas todas as atividades relacionadas ao mundo dos humanos. Normalmente, qualquer corpo que reflita imagens com mais de 65% de precisão poderia ser utilizado como portal; porém, pelo portal oficial, a possibilidade de falha no transporte é simplesmente inexistente. Portais clandestinos tendem a levar pessoas para destinos errados se utilizados erroneamente, e existe também a possibilidade de o transeunte ficar preso no “Aofgront” (abismo), um espaço criado para separar o mundo mágico do humano.
Só faltava uma autorização de Elianov para que Helga pudesse passar para o outro lado, mas ele parecia estar tão ocupado com um caso grave de fuga de unicórnios negros para o Camboja, que havia se esquecido de dar o aval para a saída de Helga para o outro lado. Então, Helga teve a idéia de utilizar seu poder psíquico para entrar em contato com ele, mas foi tudo em vão. Infelizmente, ele havia bloqueado sua mente para não ser incomodado durante o trabalho. Só lhe restava esperar até que Elianov decidisse lhe dar atenção... porém, enquanto o tempo passava, a situação no Japão ficava mais grave. Os espíritos imundos se espalhavam cada vez mais, fazendo com que cada esquina ficasse mais perigosa do que o normal. Como eram, em sua maioria, espíritos condenados e cheios de ódio, causavam diversos acidentes pelos arredores do hospital inicialmente, além de serem percebidos por pessoas espiritualmente mais sensíveis, gerando medo em algumas. Em um espaço de cinco horas depois que tudo começou, houve diversos incêndios e acidentes domésticos, assim como acidentes de trânsito. A cidade de Yukigasaka havia se tornado um caos durante a madrugada e a imprensa estava começando a se concentrar em muitos pontos, somente causando mais transtornos aos serviços de policiamento e bombeiros.
Quanto mais rápido saísse a autorização para Helga se dirigir ao local, mais cedo tudo se resolveria... mas do jeito que as coisas andavam, a situação poderia ficar logo fora de controle, talvez obrigando-a a dirigir-se ao outro mundo acompanhada por mais um mago. Ela, então, esperou por aproximadamente mais quarenta minutos até que finalmente teve uma resposta de Elianov. Ele, de repente, projetou-se em sua frente em uma espécie de cortina de fumaça levemente arroxeada, dando-lhe as instruções sobre o que fazer no mundo humano. A ordem que Helga recebeu foi de ir sozinha e fechar o portal acidentalmente aberto; depois, teria que aprisionar todos os espíritos soltos na cidade em um “Gestesbol”, uma espécie de globo utilizado para aprisionar seres espirituais, e mandá-los de volta para o mundo a que pertenciam. Seria uma tarefa fácil, se não fosse o fato de haver por volta de dez mil espíritos enfurecidos vagando pela cidade e causando o caos...
Helga recebeu de Elianov o Gestesbol e um artefato chamado de “Dikthod Armbant”, ou “Bracelete de Densidade”, geralmente abreviado para simplesmente “D.A.”. Tal artefato ajuda seu dono a concentrar seus poderes e gerenciá-los precisamente, a ponto de poder controlar bem as quantidades de força a serem utilizadas em cada movimento executado. O “D.A.” geralmente torna-se de pouco uso ou até inútil para magos mais experientes, mas no caso de Helga, ainda se fazia muito necessário, pois ela não conseguia controlar direito seu poder espiritual, que se emanava em grandes quantidades e poderia lhe causar alguns problemas, como a atração de espíritos indesejáveis.
Oito horas da manhã no Japão. A situação em Yukigasaka estava cada vez pior. Havia carros de polícia e caminhões de bombeiro transitando por todos os lados da cidade, e já havia sido declarado o estado de sítio. Na mídia, espalhava-se a notícia de que uma escola havia se incendiado por motivos desconhecidos e de que diversas construções e pessoas haviam sido atingidas por carros desgovernados. Os motoristas sobreviventes alegavam ver vultos de pessoas e animais que apareciam repentinamente em frente a seus carros, fazendo-os mudar de direção instintivamente por meio de reflexos, o que causou pelo menos cinqüenta acidentes. Diversas pessoas apresentavam um estado semelhante ao transe, o que era muito preocupante. Havia outros que tinham suas personalidades drasticamente mudadas e faziam discursos sem o mínimo nexo, ora alegando serem outras pessoas, ora acusando os outros de atrocidades nunca cometidas. Ninguém sabia o que estava acontecendo. A suposição geral feita pelos especialistas era a possibilidade de uma contaminação por agentes psicotrópicos nos alimentos ou na água ingeridos pela população, causando alucinações e fuga da realidade.
Helga, finalmente, posicionou-se acima do portal e recitou a senha mágica: “Dor’o openan. Gaudenphalkespalais’oit Aomori-ken Yukigasaka-shi’nast.”
Então, um instante depois, ela desapareceu em meio a um brilho azul e reapareceu em um espelho que ficava dentro de uma sala no templo xintoísta de Yukigasaka.