sábado, 14 de janeiro de 2012

Capítulo III - O Finado Hospital Matsutake


Olhos de cor verde fluorescente... Caninos tão grandes ao ponto de sair pela boca e chegar ao queixo... Fluidos corporais nojentos vazando por entre escamas grotescas e um cheiro de podridão que invadiu todo o compartimento de cargas... Além de tudo isso, um arrepio na espinha tão forte como nunca. Foi isso que o moço, que inicialmente estava mal intencionado, viu e sentiu. Aterrorizado pela visão nauseante que se projetava à sua frente, voltou-se para a saída do compartimento, empurrou a porta, que estava semicerrada, e saiu correndo tão velozmente como nunca havia feito em sua vida. Helga, aliviada, voltou à forma de mocinha japonesa, desta vez certificando-se de estar totalmente a rigor, espiou pela saída para verificar se havia alguém do lado de fora do caminhão, pulou para fora e saiu andando como se nada tivesse acontecido. Por dentro, ela gargalhava ao se lembrar da cara assustada do tarado do caminhão quando contemplou sua cruel criatividade. Mesmo se o caminhão lhe pertencesse, Helga tinha certeza de que ele não voltaria até lá de modo algum sozinho. Se algum dia voltasse, é claro. Como a cidade já se encontrava em estado de caos, não seria estranho se por acaso aparecesse um monstro em um lugar qualquer. Por isso, ela nem se preocupava com o fato de ter se transformado e afugentado o pervertido com cara de mafioso.
Helga precisava se apressar, pois a situação da cidade ficava cada vez pior. Por onde quer que ela passasse, havia espíritos desordeiros causando todos os tipos de problemas e bagunçando tudo. Pessoas corriam gritando umas às outras e havia diversos indivíduos caídos em transe pelas calçadas. Alguns estabelecimentos comerciais haviam pegado fogo e pessoas possuídas faziam movimentos estranhos, ora rolando pela rua deitados, ora se retorcendo no chão ou se jogando contra paredes. Os moradores sãos não sabiam se saíam ou se ficavam em casa. Carros de polícia, bombeiros e ambulâncias passavam por todos os lados, seguidos pela imprensa, que neste dia estava totalmente inflamada em vigor.
Helga precisava pensar em um jeito de chegar logo à origem de tudo aquilo. Então, desativando o “D.A.” (Bracelete de Densidade) para poder canalizar mais sua força, concentrou todo o poder espiritual em seus olhos e tentou enxergar pela aura que se projetava pela cidade um ponto mais branco do que os outros. Assim, notou que a mais ou menos meio quilômetro do lugar onde se encontrava, a cor da aura ficava intensamente branca, o que significava que lá havia mais seres do mundo da morte. Helga também podia ver que quanto mais se aproximava do local, mais espíritos descontrolados havia pelas ruas. Além disso, alguns tentavam atacá-la enquanto estava andando, mas ela somente se esquivava e não lhes dava a mínima atenção. O que lhe importava era chegar ao devido lugar e cumprir sua missão perfeitamente.
Então, continuou seu caminho apressada como nunca, pois cada segundo contava para o sucesso de sua missão. A situação estava ficando totalmente fora de controle, e se ela tivesse que chamar outro mago para ajudá-la, não ganharia os méritos necessários para ser reconhecida pelo Mestre Elianov. Por isso, precisava ter no mínimo cem por cento de sucesso para poder voltar com honra a sua terra.
Helga corria pelas ruas dobrando esquinas e desviando de pessoas descontroladas e carros desgovernados que vinham em sua direção. Analisando a situação pelo que via, não pensava em uma explicação humanamente possível para o que estava acontecendo e pensava sobre de que modo o mundo humano lidaria com aquilo tudo. Mas isso era trabalho para Elianov, que sempre arranjava um jeito de influenciar no fluxo de notícias humanas em casos críticos como esse. Além disso, para uma primeira missão, ela estava até que se divertindo. Afinal, dizem que o primeiro trabalho no mundo humano é inesquecível, ou por ser terrível e aterrorizante, ou por ser simples demais. No seu caso, era a segunda opção somada a mais um pouco de adrenalina. “Seria isto um meio termo?”, pensou Helga. Afinal, ela só conhecia o mundo humano por instruções de treinamento ou histórias que havia ouvido anteriormente, e ver tudo ao vivo estava lhe sendo uma experiência um tanto complicada.
Chegando a cinqüenta metros do hospital abandonado, só faltava virar uma esquina quando, de repente, uma mulher toda descabelada e ofegante se atirou por trás de suas costas e se agarrou a seus pés, fazendo Helga levar um tombo e cair de cara no chão. Com o nariz sangrando, ela se virou para trás e tentou se desvencilhar da louca que estrangulava seus tornozelos, quando começaram a se aproximar mais dois homens e um menino claramente com a intenção de pular para cima das duas.
Então, pensando rapidamente, ela conseguiu livrar seu pé direito e dar um chute no rosto da mulher, que caiu desmaiada. Os outros, que se jogaram em direção a elas, caíram desacordados no momento em que tocaram Helga atingidos por um choque elétrico soltado pela mesma, tendo espasmos no chão e espumando pela boca. “O que foi que eu fiz?!”, pensou ela assustada, mas voltando-se para seu dever, disse para si mesma: 
– Não posso perder tempo, depois vejo o que aconteceu.
Então, apressou-se e dobrou a esquina à esquerda, avistando o finado Hospital Matsutake na calçada direita. Neste momento, porém, ela encontrou um contratempo: o hospital estava rodeado de pessoas enlouquecidas, policiais, ambulâncias e jornalistas com câmeras de televisão. Seria impossível adentrar o local sem ser vista ou interditada por alguém “em nome da lei”. Além disso, mesmo conseguindo invadir o hospital, seria percebida se utilizasse alguma magia muito extravagante lá dentro, o que a atrapalharia muito. Com seu nariz ainda sangrando, ela começou a pensar seriamente no que fazer, quando teve uma idéia: transformar-se novamente no gato camaleão. No resto, ela pensaria mais tarde. Então, voltou para a rua onde acabara de ser atacada e, vendo que não havia mais ninguém no local, enfiou-se por trás de um carro, reativou o bracelete mágico e se transformou, em meio à luz verde fluorescente característica, em sua “fantasia” favorita. Agora, correndo como nunca, voltou para a rua do hospital e tentou achar um jeito de atravessar a multidão. Seria perigoso se fosse atropelada ou pisoteada, o que era bem provável baseando-se no que se decorria diante de seus olhos. Então, atravessou para o canto direito da rua, subiu o muro de uma casa vizinha ao hospital, coincidentemente também abandonada e, pela cerca, seguiu até o terreno ao lado, invadindo-o sucessivamente. Pronto; agora, Helga se encontrava no quintal de seu destino final, repleto de fugitivos do mundo dos mortos e de energia negativa. A visão do lugar era horrenda: ali, se encontravam centenas de espíritos vagantes com as aparências mais mórbidas que ela já havia visto, berrando e correndo (ou voando) para todas as direções. Todos eles, é claro, perceberam também que Helga estava lá e começaram a se dirigir à mesma. Ela, pouco se importando, seguiu correndo em direção a uma janela que estava aberta e adentrou a construção, que parecia ter sido abandonada há anos. 
Helga estava em uma sala de espera, na parte frontal esquerda do hospital. Lá dentro, havia alguns bancos, revistas velhas e muito lixo espalhados pelo chão, uma televisão quebrada em cima de uma estante velha e um pequeno balcão. A janela pela qual havia entrado estava semi-coberta por uma cortina rasgada, de modo que era possível até observar um pouco o movimento lá fora e receber um pouco de luz. Havia uma porta do outro lado da sala, à qual Helga se dirigiu imediatamente. Ela teria que sair dali e passar por três corredores para poder chegar até a fenda. No momento, já conseguia de algum modo localizá-la por causa de sua proximidade e densidade espiritual. Então, tratou de voltar para sua aparência original, emanando um pouco de luz, e tentou abrir a porta que, por puro azar, estava trancada. “Legal”, pensou ela, “agora terei que fazer um feitiço e tenho certeza de que serei vista de lá de fora. Já não basta toda a luz que acabei de soltar para voltar ao normal... mas já que cheguei até aqui, é o que me resta a fazer”. E, colocando seu dedo indicador direito em seu lábio inferior, recitou, tocando a fechadura com a mão esquerda:
Sklussel olle doran.
A fechadura se abriu, soltando uma luz prateada. Helga ainda não conseguia controlar o efeito de luz que seus feitiços causavam e, portanto, sempre acabava realizando-os de modo muito chamativo. No seu caso, os feitiços brilham sempre forte e chamativamente. Há também magos cujos feitiços causam ruídos, rajadas de vento e até um forte magnetismo, dentre outros eventos. Tais efeitos são chamados de “reações mágicas” e são muito comuns e difíceis de se controlar. Quem mais tem dificuldade com elas são os magos mais jovens, pois os mais velhos aprendem a anular as reações e a até a aproveitá-las para recobrar sua força mágica.
Helga avançou até o corredor à frente e seguiu à direita. Havia pelo menos cinco portas de cada lado até o final, onde havia uma escada que subia à direita para o primeiro andar e dava em outro corredor lá em cima. Estava tudo muito escuro e o lugar cheirava a podridão e morte. Curiosamente, não havia espíritos neste corredor de baixo; Helga somente sentia-se sendo vigiada e o clima do local era extremamente macabro, mas continuava seu caminho até a ponta da escada quando, de repente, todas as portas se bateram ao mesmo tempo, fazendo-a levar um susto e soltar um gritinho agudo. “Droga!”, pensou Helga, “Preciso me controlar mais! Além de ficar emitindo luzes que nem uma boba, ainda fico dando gritinhos. Quanto menos chamativa tento ser, mais acabo chamando a atenção dos outros. Tenho certeza de que vão tentar entrar aqui agora mesmo, mas que saco...”. Porém, com a bagunça que estava lá fora, ninguém havia ouvido seu gritinho agudo, muito menos visto suas luzes chamativas ou imaginado que um gato camuflado, que na verdade era uma moça excêntrica, havia adentrado o hospital bem debaixo de seus narizes. E mesmo se soubessem disso, quem ligaria para um gato ou imaginaria que ele poderia ser uma maga transformada em meio a uma situação como aquela? Helga se preocupava mesmo em demasiado com certas banalidades.
Ela seguiu correndo até a escada e a subiu apressada. Não que tivesse medo de espíritos, mas o clima do lugar era arrepiante. Helga não gostava muito do escuro e se sentia totalmente desprotegida dentro daquele hospital que emanava energia negativa. Sentia calafrios o tempo todo, como se estivesse sendo avisada de que se aproximava do perigo. Quando chegou lá em cima, deparou-se com dezenas de espíritos agitados que vinham do final do corredor e saíam por uma janela que se situava aproximadamente no meio do mesmo. “Então é por aqui que eles saem...”, pensou ela, apressando-se para realizar um feitiço para afastá-los, quando de repente pisou em falso e tropeçou, quase caindo novamente de cara para o chão. Equilibrando-se com a perna direita, retomou sua postura e percebeu que vários deles vinham em sua direção rapidamente. Então, deu um passo para trás e se esquivou de um especialmente rápido, que tentou empurrá-la em direção à escada. Mesmo sabendo que ele não conseguiria fazer isso sozinho por falta de força, não baixou a guarda, pois havia uma multidão deles se aproximando a cinco metros de distância. O barulho era infernal; os espíritos berravam ameaçando Helga, que prontamente se esqueceu do dilema entre ser chamativa ou prática e realizou um feitiço para repeli-los, emanando uma luz azul pelo corredor inteiro. Era óbvio que a esta altura, todos lá fora já a haviam percebido, porém a prioridade máxima era dar fim àquela situação. Qualquer outro problema poderia ser repensado depois. Então, Helga se apressou e, passando por entre os espíritos, que se assustavam e se afastavam ao vê-la, continuou a correr até o fim do corredor escuro e virou à esquerda, saindo em mais outro corredor cheio de fantasmas horríveis e de aparência pútrida. Ela estava começando a se sentir nauseada por causa do forte cheiro de morte do lugar. Seu estômago se revirava enquanto tentava passar pela multidão de seres horrendos e maléficos. Suas aparências eram as piores que ela já havia visto em toda a sua vida. Afinal, teriam eles vindo direto do inferno?
Tentando conter sua náusea ao máximo, ela avistou, finalmente, a porta pela qual saiam todos aqueles seres sujos e apressou-se a entrar pela mesma. Lá dentro, porém, deparou-se com uma cena um tanto inesperada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Espelho-correio de Wittklandt