domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo II - Desventuras em uma terra desconhecida

Tudo estava imerso na maior escuridão. Não havia sequer um mínimo rastro de luz, o que deixou Helga totalmente confusa. “Onde é que eu fui sair?!”, perguntou-se a si mesma.
 Voierstekken –, recitou ela estendendo sua mão direita, que imediatamente pegou fogo e iluminou o lugar todo. Helga, é claro, era imune ao fogo criado por si mesma. Portanto, somente deveria tomar cuidado com os objetos à sua volta, que poderia utilizar seu fogo à vontade. Ela se encontrava dentro de um quarto parecido com um depósito, onde havia todo tipo de ferramentas e apetrechos utilizados em cerimônias religiosas. Tudo estava impecavelmente arrumado e limpo, o que a deixou um pouco perplexa. “Que senso de arrumação maravilhoso! Preciso aprender com estas pessoas.”, pensou ela. A única coisa que não batia com o ambiente eram algumas facas e pequenas foices um pouco enferrujadas que estavam penduradas por uma barra ligada ao teto em um certo canto do cômodo. Em uma das extremidades do recinto, havia uma porta corrediça feita de madeira e papel que dava para outra sala e na outra, uma espécie de portão de madeira que com certeza iria levá-la para fora. Helga tentou abrir o portão de madeira em vão. Ele parecia estar trancado por fora. Mesmo tendo poder e habilidades suficientes para abrir o portão em menos de um segundo, ela deveria ser o mais discreta que conseguisse, pois poderia chamar a atenção de qualquer um que estivesse lá fora; isto é, se tivesse alguém naquele lugar. Um silêncio mortificante se espalhava por todos os lados, mas Helga se sentia totalmente em paz. Ela só precisava sair dali o mais rápido que pudesse e encontrar o lugar onde a fenda para o mundo espiritual havia sido aberta. Então, apagando o fogo de sua mão, deixou o quarto escuro novamente. Dirigiu-se cautelosamente até a porta corrediça, contando cada passo que dava em meio à escuridão e posicionou sua mão para abri-la. O silêncio se espalhava totalmente por cada canto do templo. Cada batida de seu coração podia ser ouvida como a batida de um tambor ressoando pelo quarto inteiro. Depois de tomar coragem, ela finalmente empurrou a porta, que se deslizou para a esquerda fazendo um barulho agudo e estridente. Tarde demais. O rangido foi ouvido em cada canto do templo. Imediatamente, ouviram-se passos rápidos do lado de fora, vindo em direção ao cômodo em que Helga se encontrava.  “Droga”, pensou, entrando rapidamente no outro cômodo e deslizando a porta corrediça para fechá-la de novo, “Vou ter que utilizar a metamorfose...”. Pensando assim, logo recitou bem baixo o feitiço necessário para se transformar em seu ser favorito: um gato camaleão. Tal transformação era muito útil e prática em momentos assim, e como Helga apreciava os gatos e a praticidade, era como matar dois coelhos com uma única cajadada.
Em um único segundo, Helga sumiu em uma luz verde e, em seu lugar, apareceu um gato que por sua vez se camuflou e sumiu também. O portão de madeira do cômodo ao lado se abriu estrondosamente e ouviu-se alguém apressado entrar por ele.
– Tenho certeza de ter visto uma luz estranha lá de fora! – cogitou o monge consigo mesmo, – Também sinto uma presença estranha aqui. Quem quer que esteja aqui dentro, mostre-se agora mesmo! –, disse ele em voz alta, mas Helga infelizmente não entendia japonês e simplesmente continuou em seu posto esperando que ele fosse embora. Porém, aconteceu o contrário. Totalmente desconfiado, ele entrou justamente no cômodo em que Helga se encontrava, deslizando a porta corrediça com tamanha força e estrondo que a maga acabou se assustando e dando um pulo pra trás.
O monge olhou diretamente para a direção onde ela estava, como se a estivesse encarando. Ela, mesmo estando camuflada e praticamente invisível, não conseguiu esconder seu assombro diante do olhar direto e lancinante que recebera e instintivamente desfez sua camuflagem e disparou pela porta corrediça que havia sido deixada aberta, atravessando o outro cômodo e indo para fora. Ao sair, se encontrou em um lindo espaço aberto repleto de árvores e folhas secas características do outono japonês. À sua volta, encontravam-se as várias repartições do templo, construídas grandiosamente em uma arquitetura característica e histórica. Helga tinha saído de um pequeno depósito que ficava separado da construção principal. “Talvez, este lugar tenha mais de mil anos”, pensou ela assombrada pela beleza histórica do local. Porém, continuou correndo e escalou uma árvore, pois o monge a estava procurando sagaz e ferozmente. “Acho que agora, estou mais segura. Ele ainda não me percebeu aqui.”, pensou Helga com seus botões enquanto se camuflava na árvore.
De cima da árvore, ela contemplou a paisagem que se estendia a toda sua volta. O templo se encontrava acima de uma montanha relativamente alta e havia uma grande escada de pedra uniformemente preenchida por “Toriis” que levava ao pé da montanha e que provavelmente era o único meio de acesso ao templo, escondido lá encima. Tudo era coberto por pinheiros desde o topo até a parte de baixo, onde eles diminuíam drasticamente e formavam uma espécie de fronteira com as construções e casas da cidade.
O monge se acalmou. Mesmo de algum modo ainda conseguindo sentir a presença estranha de Helga no templo, ainda precisava cuidar dos três moços desacordados que tinha trazido do pé da montanha. Eles estavam claramente com uma legião de “encostos”, ou seja, espíritos que se fixam em uma determinada pessoa e a atormentam, e precisavam ser purificados imediatamente. Então, ele se dirigiu aos aposentos internos e começou a se preparar para purificá-los. Enquanto isso, Helga percebeu, olhando de cima da árvore, que a cidade emanava uma aura branca, ou seja, de morte, e sentiu uma grande atividade espiritual pelos arredores da montanha. Assim, aproveitou a ausência do monge e desceu da árvore ainda camuflada, correndo o máximo possível para descer a grande escada que a levaria até a cidade. O próximo passo era ir até o lugar onde se encontrava a grande fenda e fechá-la. Mas para isso, ela precisaria voltar a ter uma forma humana, pois teria que correr muito até chegar ao lugar onde se encontrava seu primeiro objetivo. Como não sabia falar a língua local, mesmo que estivesse disfarçada de japonesa não conseguiria pegar um táxi ou muito menos um ônibus. Porém, se ficasse em sua forma original, chamaria mais atenção do que todos os acidentes que havia acontecido desde a madrugada. Aos olhos de humanos normais, ela era uma personagem realmente chamativa: tinha o olho esquerdo castanho e metade do direito verde. Possuía cabelos escuros e longos, tinha a pele extremamente branca com algumas sardas no rosto e usava roupas tipicamente magas. Além de tudo, tinha por volta de 1,75 m de altura, o que no Japão seria uma altura consideravelmente grande para uma mulher, e suas várias jóias exageradas e roupas escuras cheias de rendas e babados poderiam ser o marco inicial para que qualquer ser humano em sã consciência a notasse sem grandes dificuldades. Se alguém visse uma pessoa assim correndo na rua, ficaria assustado com toda a razão. Nem fantasias humanas eram tão extravagantes assim. Por isso, Helga recitou um feitiço e se transformou em uma japonesinha assim que chegou perto do fim da escada do templo.
Ela parou por um momento assim que terminou de descer a escada, passando pelo último Torii. Olhou para a rua que se projetava à sua frente: havia pessoas andando normalmente, mas misturadas a elas, podia ver claramente vários espíritos confusos. Concentrou-se um pouco para sentir em que lugar da cidade a densidade espiritual estava mais forte, pois provavelmente, tal seria o local no qual a fenda se encontrava aberta. Porém, como em todos os lugares havia todos os tipos de fantasmas e seres espirituais espalhados, estava difícil de saber onde é que a concentração era maior, ou qual era seu ponto principal. Se ela não tivesse parte de seu poder espiritual bloqueado até os dezoito anos de idade, poderia reconhecer o local em um único instante; mas este não era o caso. Seus poderes, muito elevados desde criança, eram considerados como uma ameaça nas mãos de uma jovem inexperiente, e por isso haviam sido selados por Elianov quando de sua vinda ao mundo mago. Ao completar dezoito anos e ter suas habilidades reconhecidas oficialmente, o selo se romperia automaticamente. Por isso, ela precisava dar o máximo de si mesma em suas missões, aplicando em um ano o que havia estudado por uma vida inteira.
Helga, sem ter opção, resolveu procurar por si mesma o lugar onde a fenda estava aberta. Os espíritos em questão não pareciam nada amigáveis, pois vinham de uma parte do mundo espiritual onde ficavam separados somente os condenados. Resumindo, eram todos um tanto malvados e enlouquecidos.
Ela, então, tentou sair do meio das árvores devagar e discretamente em direção à rua, que estava um pouco movimentada. Porém, alguns transeuntes imediatamente pararam de andar e a fitaram. “Como assim? O que tem comigo?!”, pensou Helga assustada, mas continuou a andar como se nada tivesse acontecido.
– Vestindo fantasias num dia desses?! Você não está vendo a situação da cidade?! Vá chamar a atenção em Tóquio, sua sem vergonha! – disse uma senhora de idade que passou por perto dela. Helga, sem entender palavra alguma, continuou a andar como se nada lhe tivesse acontecido, tentando atravessar a rua o mais discretamente possível. Neste ponto, olhou para as pessoas à sua volta: grande parte delas a olhava com rostos assustados, alguns parecendo bravos, outros achando graça. “Mas o que é que está acontecendo? Quanto mais discreta eu tento parecer, mais sou perce...!”, Helga não terminou sua cogitação. Simplesmente olhou para as próprias roupas e percebeu que não as tinha trocado. Grandíssima estúpida. Se tivesse prestado mais atenção na hora de fazer o feitiço... mas agora, era tarde demais.
Sem saber o que fazer, retribuiu aos olhares com um sorriso sem graça e continuou a andar à procura de algum lugar sem ninguém onde pudesse se esconder e “se trocar”. Então, avistou um caminhão de carga com as portas do compartimento de carga abertas. Não pensou duas vezes e, quando viu que não estava passando uma única alma viva por perto, lá se adentrou. Logo refez o feitiço e se preparou para sair de dentro do compartimento, quando de repente apareceu um moço excentricamente vestido do lado de fora. Ele estava pronto para fechar as portas, mas acabou vendo Helga e se assustou inicialmente, fitando-a por alguns segundos. Ela ficou totalmente sem reação. O que deveria fazer? Só poderia apagar a memória de alguém em casos de extrema necessidade...
O moço se vestia de um jeito extravagante. Estava de terno e óculos escuros, e era possível ver, em seu pescoço, pequenas partes de uma tatuagem que provavelmente ocupava seu peito e suas costas inteiramente. Com um rosto malicioso, ele tirou os óculos escuros, entrou no compartimento e semicerrou as portas por dentro. Então, ligando uma lanterna que havia tirado do bolso interno de seu paletó, dirigiu sua voz a Helga:
– Você estava me bisbilhotando, mocinha? Foi mandada pela polícia? Acho que pra te soltar, vou ter que receber uns favores... – dizendo assim, veio se aproximando dela, que por sua vez foi se recuando até encostar-se a uma caixa. Ela, sem entender palavra alguma do que ele dizia, começou a se sentir mal. Primeiramente, porque abominava lugares muito fechados e já estava se sentindo sem ar apenas por estar dentro daquele caminhão. Depois, vinha o fato de ter percebido somente pelo olhar do moço as suas más intenções. Helga realmente se sentia desconfortável com tal situação... Do jeito que as coisas andavam, a única solução seria utilizar seus poderes pra se defender. Ela só poderia utilizá-los na frente de humanos em casos críticos, por isso pensava sempre muito bem antes de tomar qualquer decisão drástica. Porém, juntando a pressa a seus objetivos principais, seu uso se fazia necessário. Assim, Helga decidiu por fim aplicá-los no pervertido.

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